2 de junho de 2011

A TRADIÇÃO RELIGIOSA E SUA CONTINUIDADE NOS TERREIROS

Enquanto estejamos falando de tradição religiosa afro-brasileira, não devemos perder de vista as origens, as relações com nossos ancestrais, os mais antigos de quem nos lembramos, e então, a partir daí, tentar-mos identificar os tradicionários; aqueles que seguem a tradição.

Parece que dentre tantas questões que têm atormentado os sacerdotes de comunidades tradicionais, a mais delicada é o comportamento daqueles que deturpam e não seguem a tradição. Mesmo porque muitos desses são oriundos daquelas comunidades e como tal se legitimam representantes de uma tradição que fazem questão de ignorar. Uma vez não tradicionários, esses indivíduos desenvolve um estranho sistema de “diplomação” de sacerdotes, provocando uma descaracterização do sagrado, passando pela falta de autenticidade dos chamados diplomas.

Essa é a indústria da iniciação religiosa afro-brasileira no Brasil, que de tão rendosa, passa pelas mãos de patrícios nossos até as mãos de africanos espertos.

Desnecessário detalhar aqui uma outra forma de geração de não tradicionários, qual seja; a rede de iniciação por correspondência e pela internet.

Na verdade a falta de autenticidade em sacerdotes habilitados produz uma relação de apatia nos rituais realizados, já nos domínios desses, que por si só denuncia ao expectador mais habituado, essa falsa postura. Entretanto, para nós, sacerdotes, preocupados com o futuro da nossa religião importa a existência de uma outra parte de expectadores; aqueles menos avisados que podem estar tomando conhecimento de práticas falsas como se verdadeiras fossem e adquirindo comportamentos que nunca foram passados pelos nossos ancestrais. Para esses espectadores está sendo mostrada uma manifestação contendo apenas algumas características da religião afro-brasileira.

Isso pode parecer comprometedor e realmente o é. Principalmente se atentar-mos para a verdade de que a população se renova, no Brasil, com muita velocidade e consequentemente surgem adeptos novos rapidamente, cada vez mais distantes de uma tradição religiosa, das suas origens, dos seus costumes e hábitos, da hierarquia e da sabedoria dos antigos.

Seguir a tradição demanda, em princípio, possuir a sabedoria da pesquisa e da obediência aos procedimentos que cercam os rituais na sua essência. Não cabe ai as transformações que estão sendo implantadas por alguns “diplomados” em nome da modernização e que só tem contribuído para o ridículo de suas próprias comunidades.

Seguir a tradição demanda ser suficientemente humilde para obedecer a hierarquia religiosa e abraçar com orgulho o que lhe for determinado por direito. A humildade pode servir de ponte para o começo de um aprendizado profundo e eficiente.

A velha Emiliana, como era chamada a humbona do terreiro do Bogum, dizia: No candomblé do jêje, onde eu me vi menina, a gente nunca sabe o que vai aprender amanhã. E completava; “Eu nunca não vi quem soubesse de tudo”.

Aquela era uma demonstração de humildade de quem sabia mais do que todos nós, seus discípulos. Emiliana era mais humilde ainda quando visitava ou era visitada por autoridades outras de terreiros que lhe reconheciam o saber. Naqueles momentos trocava idéias e perguntava e respondia e contava e ouvia. Era a reengenharia dos anos quarenta.

Hoje a vaidade impede que certos religiosos se reaproximem de suas origens em busca de conhecimentos que lhes complementem. Hoje se compete.

Não entendemos como lícita a “auto-graduação”, que poderia situar alguns indivíduos como se esses fossem representantes de ponta da religião afro-brasileira. Essas pessoas, quando muito, poderiam representar a sua comunidade, se as possuírem. Os seus seguidores se distanciariam mais ainda da tradição, portanto também já não seriam tradicionários.

A Tradição recomenda ou determina que o iniciado, na medida em que se aprofunda nos rituais e preceitos, se torne mais parcimonioso no conversar e no divulgar, a fim de preservar os seus conhecimentos, dando, assim suporte à preservação do sagrado. O crescimento dos seus conhecimentos será proporcional à sua maturidade. Logo se vê que o processo é lento e relativamente longo. Por isso é muito desconfortável conviver com a existência de Babalorixá e Yalorixá formados em uma semana de curso semi-intensivo.

A falta de observação aos requisitos exigidos para a iniciação de uma Yalorixá ou de um Babalorixá e até mesmo de Ogans e Ekedes conduz ao risco de se qualificar pessoas irresponsáveis e sem nenhum vestígio de compromisso com a religião e sua tradição. Serão pessoas que passarão a enxergar a possibilidade de explorar a boa fé dos indivíduos componentes daquele grupo de inocentes do qual me referi no início deste texto. Serão pessoas que transmitirão aos seus terreiros as suas próprias formas de vida. E em muitos casos essas formas de vida se distanciam muito do viver tradicional e já não possuem qualquer afinamento com os preceitos religiosos e até mesmo com o sagrado.

Dessa forma se explica os estranhos aparecimentos de “orixás”, “Voduns” e “Inkissis” aqui e ali, cujos comportamentos irreverentes nos colocam na difícil posição de denunciar a teatralização.

Do mesmo modo assim também se explica o desaparecimento de alguns representantes tradicionais do panteão afro-brasileiro em Salvador.

Um terreiro chamado Pozeheim, aqui em Salvador, sobreviveu até o final dos anos quarenta. Aquele conservava uma linha séria do culto aos Ancestrais e Cavionos e era comandado por gente de respeito. Resistiu o quanto pode aos diversos inconvenientes causados por uma guerra mundial, mas não abriu mão de conservar as suas tradições. Por não concordar em passar o comando para pessoas não tradicionárias seu dirigente preferiu encerrar o processo ritualístico. Até o final dos anos sessenta ainda se podia ver pedaços do templo nas matas do Alto das Palmeiras, local próximo aos limites antigos do terreiro do Bogum.
Muitos Voduns ancestrais cultuados naquela comunidade já não são mais evocados. Perdeu-se a essência do processo evocativo.

Aos tradicionários cabe a responsabilidade de manter a marca da tradição em todos os momentos em que estiverem solicitados aos procedimentos religiosos.
Para isso basta seguir os ensinamentos sem querer lhes emprestar inovações descabidas.

Note-se, entretanto, que não se trata de respeitar a tradição como elemento inerte, sem vida, congelado, mas como sustentáculo; passível de ser reelaborado e ao mesmo tempo elaborar novas formas de resistência, sem se desvincular da essência.

Considere-se também que quaisquer que sejam as reelaborações, essas devem ser construídas para a própria tradição, para seu melhor desempenho, para seu melhor entendimento e nunca em benefício de elementos interessados em justificar as suas próprias deficiências.

Everaldo Duarte
Pejigan/Agbagigan.